De onde foi tirada a situação da charge

A charge ou cartum é um desenho de caráter humorístico, geralmente veiculado pela imprensa. Ela também pode ser considerada como texto e, nesse sentido, pode ser lida por qualquer um de nós. Trata-se de um tipo de texto muito importante na mídia atual, graças à sua capacidade de fazer, de modo sintético, críticas político-sociais.

Assim como as piadas, as charges requerem a mobilização de conhecimentos prévios para que seja possível a interpretação. Como conhecimentos de fatos que circulam na sociedade, de questões culturais e ideológicas etc. Um exemplo: na piada “feliz foi Adão que não teve sogra”, NÃO HÁ COMO INTERPRETÁ-LA E RIR DELA sem o conhecimento de quem foi Adão, na história (o primeiro homem), de quem foi Eva (a primeira mulher), de que sogra é a mãe da mulher ou do homem com quem se é casado e, ainda, de que ter sogra, em nossa cultura, é algo ruim.

Esse simples exemplo (que não é um texto simples) nos mostra que a linguagem não é um código. Na piada, os sentidos foram veiculados, mesmo sem estarem codificados. Conceber a língua como um código é assumir que o conteúdo semântico está integralmente explicitado por estruturas sintáticas, o que não é verdade.

Desse modo, a leitura interpretativa de charges é uma habilidade cada vez mais cobrada em provas de vestibulares e de concursos em geral, tanto nas questões de língua portuguesa quanto nos temas de redação. Isso acontece porque a charge é um modelo de texto que extrapola a linguagem verbal (por vezes até nem usada), exige um bom nível de conhecimento de mundo e competência para inferir críticas e relacionar fatos sociais. Por isso, se torna essencial o treino da leitura de charges, visando ampliar seu nível de compreensão e evitando ser surpreendido nas próximas provas.

1.1. EXEMPLO DE USO DE CHARGE

Há cerca de dez anos, os exames escolares passaram a se utilizar de charges para avaliar a capacidade de interpretação dos alunos. No ENEM 2010, por exemplo, o tema proposto para a prova de redação era “O indivíduo frente à ética nacional”, que vinha, como de costume, acompanhado de uma coletânea composta por dois textos opinativos, publicados na mídia impressa, e a seguinte charge:

De autoria de Millôr Fernandes, a charge discute a honestidade social a partir de uma cena irônica: a lamentação de um indivíduo que, por só poder lidar com gente honesta, encontra-se num deserto.

A charge, associada aos textos da coletânea e ao tema anunciado na proposta, compunham um panorama mais amplo do problema incluído na proposta, conduzindo o leitor a alguns questionamentos que poderiam direcionar a elaboração de seu texto:

1) Existe alguma pessoa completamente honesta no mundo? O que isso significa?

2) O indivíduo que chama os outros de desonestos e antiéticos apresenta realmente um comportamento ético que o diferencie dos demais?

3) O fato de acharmos que a maioria age de modo antiético nos daria o direito de assim também o fazer, para não sermos os únicos diferentes?

4) A ética que deveria nortear as relações humanas é hoje característica de poucos? Ela se tornou uma exceção?

Essa proposta de redação do ENEM possibilitou aos alunos construírem sua argumentação a partir dos exemplos que melhor se adequassem à sua linha de raciocínio.

1.2. O TEMPO E O ESPAÇO NA INTERPRETAÇÃO DAS CHARGES

Os temas de charges nem sempre são tão amplos. Podem estar ligados a acontecimentos específicos de uma época ou local, o que é muito frequente nas charges diárias. Quando são publicadas em jornais regionais, por exemplo, as charges podem fazer referência a fatos que não são conhecidos por moradores de outras cidades ou Estados, o que lhes dificulta a compreensão.

Nos jornais de grande alcance, as charges normalmente recuperam os assuntos que ganharam destaque nacional nos dias anteriores. Para compreendê-las, o leitor precisa acionar uma série de conhecimentos prévios que já possui no seu próprio repertório cultural.

Exemplo, observe a charge a seguir:

Fonte: Jornal Olho Vivo

Retirada de: www.chargeonline.com.br

Imagine que daqui a alguns anos vejamos essa charge do “castelo do Edmar”. Quem pode garantir que a entenderemos? Será que a lembrança de quem foi Edmar será tão automática, bastando-nos somente um rápido olhar para produzirmos um riso? E o desenho de um castelo bem no lugar onde fica o Congresso Nacional? Fará sentido? Pode ser que não. A possível não interpretação (e isso não quer dizer que você tenha um problema ou uma dificuldade para compreender) é uma prova de que interpretar não é decodificar; interpretar é mobilizar saberes diversos e atribuir um sentido que não é dado a priori, mas construído.

Isso ocorre porque nosso conhecimento de mundo, isto é, o conhecimento que temos de fatos ocorridos, lugares, pessoas, etc, constantemente sofre mudanças, afinal, o tempo todo recebemos novas notícias (umas mais marcantes do que outras), memorizamos aquilo que nos parece ser mais importante (é bom lembrar que a memória é atravessada também por fatores sociais e históricos) etc. Por causa dessas mudanças, uma charge que hoje faz sentido para nós, poderá não fazer no futuro.

1.3. DESAFIOS

1)     Veja essa charge e responda: Há alguns conhecimentos que mobilizamos para que a interpretação dessa charge seja possível. Quais são eles?

Charge de M. Jacobsen

2)     Observe a charge e leia o texto a seguir para responder as questões:

Pirata:

substantivo de dois gêneros

– aventureiro dos mares que pilha navios mercantes e povoações costeiras; corsário

– Derivação: por extensão de sentido. – bandido, ladrão

– Derivação: sentido figurado.- indivíduo namorador, galanteador

adjetivo de dois gêneros

– diz-se do que é realizado com apropriação da forma anterior ou com plágio ou cópia de uma obra anterior, com infração deliberada à legislação que protege a propriedade artística ou intelectual – Ex.: disco p., livro p.

– que opera ou transmite sem autorização, de maneira clandestina (diz-se de estação de rádio ou de TV)

Responda:

a)     Com base nas definições acima, explique qual dos sentidos do termo pirata se aplica ao diálogo presente na primeira cena do cartum. Que elementos, presentes na imagem, permitem que se atribua um sentido específico a esse termo?

b)    “Pois tirem o pirata e tragam o original”. Como o senhor de terno azul espera que essa ordem seja entendida por seus auxiliares? Como os auxiliares interpretam a ordem dada?

c)    O gesto inesperado dos auxiliares pode ser compreendido somente a partir de informações presentes no cartum? Explique.

d)    Leia o texto.

A melhor história dos últimos tempos é essa do Lula assistindo a um DVD pirata de 2 filhos de Francisco era pleno ar. Ou melhor, em pleno AeroLula, aquele avião que é dele, mas não é. Para o PT, foi um baita azar de Lula, que não sabia de nada. Para a oposição, é um escândalo sem precedentes. Para o Planalto, a culpa pelo DVD pirata é do mordomo. Ops! Do ajudante-de-ordens, que vem a ser o oficial que cuida de tudo na rotina do presidente. […] CATANHÊDE, Eliane. Pirataria. Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 nov. 2005. (Fragmento).

As informações presentes no texto ajudam a interpretar as duas cenas do cartum. Com base nelas, diga quem é o senhor de terno azul e qual sua função.  Quem é o indivíduo de camiseta vermelha?

Com base no texto, como pode ser explicada a interpretação que os auxiliares dão à fala “tirem o pirata e tragam o original”?

Foto: reprodução

Por Mariana Gama

Na última semana, o professor Marcos Antônio Tavares, 45 anos, foi afastado da escola onde trabalha após aplicar uma atividade pedagógica para alunos do 3º ano do ensino médio. Ele lecionava aulas de português e literatura no colégio Liceu da Humanidade de Campos, em Campos dos Goytacazes (RJ). Na segunda-feira, 18, o professor usou uma charge para incentivar a livre interpretação crítica, como o ENEM utiliza em suas provas, e a atividade foi repassada por um dos alunos e postado nas redes sociais, distorcendo a proposta de Marcos Antônio. A charge trazia os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, respectivamente do Brasil e EUA, envoltos juntos em lençóis e uma legenda sobre patriotismo.

“Sempre usei charges para trabalhar em sala de aula. Não existe doutrinação nenhuma”, disse o professor. O afastamento foi informado pela diretora do colégio na sexta-feira, 22, sob justificativa de um pedido do governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, para “acalmar os ânimos”. No mesmo dia, a Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), junto ao deputado Flavio Serafini, recebeu o professor para descrever e reportar a situação. Marcos ainda relatou a grande manifestação de ódio que está sofrendo na internet. “Vivi um dia de terror” disse o professor.

Desde que surgiu como proposta em 2016, o projeto conhecido como “Escola sem Partido” levanta o debate sobre a pluralidade de ideias e concepção pedagógica nas escolas e universidades, que é previsto pela Constituição mas é colocado como doutrinação por partidos e entidades conservadoras.

’Escola sem Partido’ é um disfarce conservador para ‘escola do meu partido e minha igreja”, diz o filósofo Leandro Karnal.

Na segunda, 25, o professor foi à delegacia de crimes virtuais para reportar o linchamento virtual que vem sofrendo. Em defesa da liberdade pedagógica e do professor, alunos do Liceu realizaram um ato na terça-feira, 26, em frente à escola.

O cartunista e autor da charge usada na atividade, Vitor Teixeira, 32 anos, também foi alvo de perseguição na internet. Cerca de um mês atrás sua conta no Instagram, onde expõe seu trabalho, foi tirada do ar, sob alegação de que era uma conta falsa. Vitor entrou com um processo contra o Facebook, empresa dona do Instagram.

“Acho que isto é um aperitivo do que eles querem colocar como escola sem partido” disse Vitor para Mídia Ninja.

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