Como estudar igual aos coreanos

Como estudar igual aos coreanos

Os brasileiros Koji Suzuki e Paulo Kemper Filho e algumas de suas invenções. Eles já têm três patentes e pretendem abrir uma empresa... na Coreia

Agosto é o último mês das férias de verão nas escolas da Coreia. Os termômetros chegam aos 30 graus, as marcas mais quentes do ano. Para as jovens coreanas, a moda é usar sandálias que revelam as unhas coloridas dos pés – vermelhas, azuis, verdes. Mas, nas escolas e universidades, a moda não muda desde os anos 60. Pouco importa a roupa, desde que se estude, e muito. Na Coreia, férias só significam que não há aulas no sentido literal da palavra. Trabalhos, atividades extras e imersão nos laboratórios ocupam parte do período de folga. Na Universidade Nacional de Seul (SNU), a mais prestigiada do país, o que se vê em agosto nos mais de 200 prédios do campus principal, no bairro de Gwanak-gu, é vida agitada. Às 7 da noite de uma sexta-feira, o ônibus 5511 não dá conta dos passageiros que esperam para ir até a estação de metrô mais próxima. A porta não fecha. Alguns estudantes ficam para o ônibus seguinte.

A cada três anos, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) compara o desempenho de estudantes na faixa dos 15 anos de idade no mundo. A última bateria de testes, aplicada em 2009, teve a participação de meio milhão de alunos, de 65 países. Lá estão os coreanos entre os melhores desempenhos em matemática, ciências e leitura. O segredo não está na genética. Está no esforço. O que importa não são os olhos, mas o ensino puxado – para o bem e para o mal. E quem puxa não são apenas os professores. Os maiores protagonistas da rígida educação coreana estão em casa: os pais. “Você cresce ouvindo que tem de ser o melhor em tudo. Só que todo mundo é muito preparado”, diz Hyunmin Cho, 25 anos, estudante de biologia da SNU. “A atmosfera aqui é competitiva demais.”

O comportamento dos pais é um efeito direto dos tempos vividos pelo país depois da Guerra da Coreia (1950 a 1953). Na época, o PIB per capita era de US$ 67, um dos menores do mundo. “Se meu filho de 18 anos não quer estudar, até hoje eu digo: ‘quando tinha a sua idade eu era muito pobre. Qual é o problema com você?’”, afirma Eui-Chul Jeong, gerente-geral do time de planejamento global da Kia Motors. Apelar para os tempos difíceis está no discurso tradicional de todo pai coreano. Eles empurram os filhos. E cobram resultados com a rigidez de chefe de um chaebol. “Não é fácil ser pai na Coreia”, diz Jeong.

Até a década de 50, o acesso à educação era muito restrito. Em 1945, apenas 22% dos coreanos sabiam ler e escrever. “Os pais vendiam até terras para investir nos estudos. Viam na educação um caminho para sair da pobreza”, diz o professor Bong Joo Lee, da Faculdade de Ciências Sociais da SNU. A primeira grande ação do governo nessa área foi um plano aplicado entre 1954 e 1959. O ensino elementar passou a ser obrigatório. A partir daí, o governo não parou de investir pesado. Há uma ampla rede de escolas públicas na Coreia – de alta qualidade. Hoje, segundo as estatísticas do Mest (Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia), das 5.855 escolas de ensino elementar, 5.761 são públicas. A taxa de analfabetismo no país é irrisória: 1%. A vida escolar começa aos 4 anos, no jardim de infância. As crianças já começam a ler, a escrever e a aprender... matemática.

Em anos de estudo, a estrutura da escola coreana é similar à do Brasil. Antes de chegar à faculdade, um aluno passou por 12 anos de aulas: ensino elementar (6 anos), médio (3 anos) e colegial (3 anos). Mas em horas... quanta diferença. A natureza competitiva do coreano e a cobrança para ser o melhor abriram espaço para um fenômeno: o pujante mercado de aulas complementares. É premissa básica de um pai assegurar igualdade de competição para o filho no futuro. O vizinho aprende piano? O filho também precisa. Estava criado um cenário com longas jornadas de estudo diárias.

 
Como estudar igual aos coreanos
 Su-neung (pronuncia-se su-num) Significa “habilidade para estudar”. Designa o vestibular para entrar na universidade. Falhar não é aceitável

Hoje, um coreaninho típico vai para a escola às 8 da manhã e fica lá até o início da tarde. Depois segue para aulas de inglês, piano, natação, tae kwon do. “Meu filho sai de casa às 8 da manhã e volta às 9 da noite. Desde pequeno, quase não tem tempo para brincar”, diz o professor Doo-Bin Im, 43 anos, da Universidade de Estudos Internacionais Pusan, pai de um menino de 13 anos. O medo de prejudicar o futuro do filho mantém o esquema em ação: os concorrentes continuam estudando muito. “Acho o ensino puxado demais. Mas, se tirar meu filho, posso deixá-lo em desvantagem.” Em casa, as crianças ainda têm tarefas dadas pelo professor. Muitas estudam até as 23h.

Mais de 80% dos alunos cursam faculdade. Aos sábados, mesmo quando não há aula, vão para a biblioteca estudar. Em algumas universidades, nota 9 pode ser ruim


Desde os primeiros anos da escola, os coreanos se preparam para o su-neung, o vestibular para entrar na universidade. A palavra significa habilidade para estudar. As provas são feitas na terceira quinta-feira de novembro. Os níveis de tensão dos alunos vão às alturas. Falhar não é aceitável. Entrar nas melhores universidades (as nacionais, também pagas), que vão garantir os melhores empregos, depende do resultado desse teste. O governo costuma pedir às empresas que posterguem o horário de entrada de seus funcionários para diminuir os congestionamentos no dia da prova.

Como estudar igual aos coreanos
Tablet na mochila
A escola do futuro na Coreia não terá papel. Nos planos do governo, até 2015 todos os livros didáticos serão digitais. O investimento no projeto é de US$ 2,1 bilhões. A ideia é que os livros sejam lidos em tablets fornecidos pelas escolas. Paralelamente, será possível acessar conteúdos num sistema de computação em nuvem. Cerca de 60 escolas já testam os livros digitais.
Hoje, 83,8% dos alunos coreanos que terminam o colegial vão para a faculdade. E continuam a se dedicar integralmente aos estudos. “Não há tempo para trabalhar”, diz Choon Woo Park, adido educacional do consulado da Coreia em São Paulo. “Aos sábados, mesmo quando não há aula, os alunos vão para bibliotecas e laboratórios.” Muitos emendam mestrado e doutorado. A cada ano, cerca de 10 mil estudantes recebem o título de Ph.D. no país, segundo o Instituto de Desenvolvimento Educacional coreano. Depois de formados, esses cérebros se dividem entre as empresas e as universidades.

Os professores coreanos têm fama de durões. Não é só fama. A rígida hierarquia que move o país está presente na sala de aula. Não é comum questionar o que um professor diz. Na sociedade, ele é uma figura respeitadíssima. Pode não ganhar tanto quanto um alto executivo de chaebol, mas tem status. Nas universidades, principalmente entre os professores do primeiro ano, é comum dar prazos bizarros, como pedir aos alunos para entregar uma tarefa à meia-noite da sexta-feira ou do domingo. “Já tive um trabalho para a meia-noite da noite de Natal”, diz o brasileiro Tomás Scherrer, 25 anos, aluno do Kaist (Instituto Avançado de Ciência e Tecnologia da Coreia), o MIT coreano. Ele chegou ao país há um ano e meio, para fazer mestrado na área de semicondutores. Não é fácil entrar no Kaist – nem sair. As notas são dadas por comparação. Se a média da sala for muito alta, um aluno que tirou 9 pode ter uma avaliação final ruim.

Nas universidades, boa parte dos professores dá aulas com projeções de PowerPoint. O material costuma ficar disponível para que os alunos consultem de casa – e decorem tudo, um esporte nacional. Mas há casos em que o ultrapassado giz sobrevive, em nome da própria tecnologia. No Kaist, há salas equipadas com filmadoras para gravar as aulas. Elas seguem os movimentos do professor na lousa, e o giz facilita a leitura no vídeo.

 Uma dupla brasileira na balada

Assíduos nas madrugadas do Kaist, dois alunos do Brasil conseguiram três patentes – e têm mais quatro em avaliação

São 3 da madrugada de um sábado numa das bibliotecas do Kaist. Luzes acesas, nenhuma cadeira vaga. “Até parece uma balada”, diz o brasileiro Koji Suzuki, 25 anos, aluno do quarto ano de engenharia mecânica. O silêncio entrega que não há nada de diversão por ali. A biblioteca é a balada da vez para os estudantes na semana anterior à das provas. “Na Coreia, a turma do fundão não é a da bagunça. É o pessoal que dorme, porque ficou estudando até de madrugada”, diz Suzuki. Instalado a cerca de 150 quilômetros de Seul, na cidade de Daejeon, o Kaist virou uma incubadora de cérebros inovadores. Nos seus campi, uma das estratégias é misturar alunos de diferentes cursos. Suzuki se aliou a outro brasileiro, o estudante de engenharia elétrica Paulo Kemper Filho, de 26 anos. Se o Brasil ainda patina na criação de patentes, não é por falta de cérebros brasileiros. Juntos, os dois já registraram três patentes na Coreia e estão em processo de avaliação em outras quatro. Elas envolvem um projeto de recarga de bateria para aeronaves sem tripulação. Os custos do registro de cada patente (cerca de US$ 3 mil) são pagos pela universidade, que fica com os direitos. Se a patente for vendida a alguma empresa, os autores (professor incluído) levam 50%. Depois de terminar a graduação, ambos pensam em emendar um mestrado na Coreia e, no futuro, abrir uma empresa. Voltar para o Brasil? “Sim, para visitar os meus pais”, diz Kemper.

Como estudar igual aos coreanos
3 horas e 6 minutos é o tempo médio gasto por dia entre as crianças do ensino primário com aulas extracurriculares

 O país campeão de suicídios

Há um grande debate hoje na Coreia sobre os limites do rígido sistema de educação e os efeitos negativos desse ambiente de contínuo estresse e competição. O país tem a mais alta taxa de suicídio entre os membros da OCDE – 21,5 em cada 100 mil habitantes. Mais de três quartos desses mortos são jovens de 15 a 24 anos. E o número vem crescendo (em 2008, a taxa de suicídios nessa faixa etária foi de 13,5 para cada 100 mil; em 2009, subiu para 15,3). “O estresse é a causa mais comum dessas mortes. É pressão demais”, diz o professor Won-Bok Rhie, da Universidade Feminina Duksung. Em seu livro Korea unmasked (“Coreia desmascarada”), ele discute, no formato de quadrinhos, como a história do país determinou a personalidade do coreano. A obstinação, diz, é um efeito direto da luta para reconstruir o país.

Os debates sobre os limites da rigidez se acirraram este ano com uma sequência de suicídios no Kaist. Só entre janeiro e abril, foram quatro estudantes e um professor. O Ministério da Educação tomou algumas medidas para aliviar a carga de estudos. A partir deste mês, na volta das férias, 10% dos alunos dos níveis elementar, médio e colegial passarão a ter cinco dias de aula – sem os dois sábados por mês que estavam no currículo. Em março de 2012, todas as escolas devem adotar esse esquema. Só que muitos pais não aprovam a medida. E estão correndo encontrar novas atividades que ocupem o sábado dos filhos.

Um dos coreanos que combatem esse mantra é John Tae-shik Ha, de 45 anos. Ele foi criado por uma família adotiva na Suécia, voltou à Coreia há nove anos, tem um filho de 4 e dá aulas de inglês. “Não vou forçar meu filho a estudar, quero que ele desenvolva seus próprios talentos. Os coreanos são bitolados”, diz. “Aqui é mais importante ter boa nota nos testes do que saber as coisas. Os estudantes decoram muito, mas no fim não lembram de quase nada.”

Até bem recentemente, os professores do ensino básico também eram adeptos de punições corporais pela indisciplina, com varas. Desde março, a prática está proibida pelo Ministério da Educação. Mas punições indiretas – fazer flexões ou ficar ajoelhado na sala – não foram abolidas. Uma pesquisa da Federação Coreana de Associações de Professores apontou que 89,4% dos docentes aprovam esse tipo de prática.

A mudança de atitude nas escolas também responde a uma transformação gradual no comportamento dos jovens coreanos. Nem todos se comovem com o discurso de miséria que os pais ou avós passaram. Os jovens vão ficando mais ocidentalizados – do modo de se vestir ao gosto pela pizza e pelos donuts. Também olham com mais atenção para o mercado externo, até porque a disputa por uma vaga ao sair da universidade é acirrada demais. “Como qualquer coreana da minha idade, penso em ser professora ou funcionária pública. Mas, se não ganhar dinheiro aqui, vou trabalhar fora da Coreia”, diz Boyung Lee, 21, estudante de relações internacionais da SNU. “Aqui todo mundo quer ser a mesma coisa e ter uma vida estável. Não há graça nisso.”

Como estudar igual aos coreanos

Campus da SNU. O novo programa dá ênfase a bio e nanotecnologia

Como estudar igual aos coreanos
A forma como o governo enxerga a inovação dentro da universidade fica clara na organização de sua estrutura. Em 2008, o governo unificou o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência e da Tecnologia, formando o Mest (Ministério da Educação, ciência e Tecnologia).

 A ajuda das empresas

O sofisticado sistema de educação montado pela Coreia foi também um elemento imprescindível para que o país ganhasse destaque na inovação. Currículos e livros didáticos mudam rapidamente, conforme a necessidade do mercado. “Se você não tiver uma educação capaz de fazer as pessoas mudarem depressa, não terá inovação. A cada quatro ou cinco anos, há um novo plano nacional de educação na Coreia, amplamente discutido”, diz Song Won Park, professor do Departamento de Engenharia Química da Poli/USP.

Mercado virou uma palavra fundamental dentro das faculdades. “A cooperação com as empresas é intensa. Qualquer companhia pode usar a infraestrutura e os cérebros da universidade”, diz o professor Youngil Kim, da SKKU (Universidade Sungkyunkwan). Com isso, entra mais capital privado para pesquisas. Também na lista das universidades mais importantes do país, a SKKU tem um de seus campi na cidade de Suwon, onde está o Q.G. de pesquisas da Samsung Electronics. Não foi por acaso. Na década de 60, a empresa comprou a universidade, que tinha base em Seul. Hoje, a Samsung é a dona da Fundação da SKKU, com um orçamento anual de cerca de US$ 76 milhões. Além de ter acesso aos cérebros da faculdade durante os cursos, contrata muitos deles logo que se formam.

As faculdades têm visão de mercado. Não buscam qualquer inovação, e sim as lucrativas. As empresas investem nelas – e colhem as pesquisas e os cérebros, seus futuros funcionários


Por olhar para o mercado, as universidades já não perseguem qualquer tipo de inovação. Querem as lucrativas. “A corrida por patentes não é tão rápida na Coreia quanto imaginávamos. Em muitos casos, eles preferem produzir primeiro e patentear depois. O mais importante é o tempo que uma invenção leva para chegar ao mercado”, diz o professor Guilherme Vaccaro, gerente de pesquisa, desenvolvimento e inovação da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), localizada em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Ele esteve com outros quatro professores da Unisinos na Coreia, durante cinco meses, para estudar o modelo de educação e identificar o que o Brasil pode aproveitar. “Um divisor de águas para o Brasil seria termos um relacionamento universidade/empresa nos moldes do que existe na Coreia.”

Durante a missão, a Unisinos assinou seis acordos de cooperação com instituições coreanas, um deles com a SKKU. A universidade também atraiu investimento privado para o país. A Unisinos vai cooperar e receber investimentos da HT Micron, uma joint venture formada entre a coreana Hana Micron e a brasileira Altus. A empresa está investindo US$ 10 milhões na construção de uma fábrica em São Leopoldo. Outros US$ 25 milhões devem ser injetados no instituto de pesquisas e desenvolvimento da Unisinos na área de semicondutores. “Se a companhia tiver sucesso, vamos investir mais”, diz Hyouk Lee, diretor do Instituto de P&D da Hana Micron.

Com a mentalidade de gerar resultados já incorporada às universidades, a nova onda do ensino coreano é investir em currículos multidisciplinares. A fusão de disciplinas pode envolver, por exemplo, habilidades complementares como engenharia e administração. “Estamos fazendo uma grande mudança no sistema educacional. A ideia é produzir uma geração de trabalhadores mais criativa”, diz o professor Bong Joo Lee, da SNU.

Como estudar igual aos coreanos

Teste do vestibular, um dos mais rigorosos do mundo. Os coreanos estudam para ele desde criancinhas

 Futuro foco: ciência de base

Outra mudança é a preocupação de ter cursos mais globalizados. Na SNU, 20% dos cursos de graduação estão sendo dados em inglês. Há ainda um investimento mais forte em pesquisa de base, uma etapa que a Coreia havia pulado. Antes, só se pensava em pesquisa aplicada. “Habilidades originais serão fundamentais. Não adianta ficar só copiando e aplicando”, diz Joo Lee. Neste momento, algumas das áreas promissoras são biotecnologia, ciências naturais e nanotecnologia.

Além de dar aulas em inglês, as universidades têm importado professores. O plano é reforçar áreas que os coreanos consideram prioritárias, como o design. A professora Mary Kathryn Thompson veio do MIT para dar aulas no Kaist, em 2007. Todo aluno do primeiro ano, não importa a especialidade, tem de cursar Introdução ao Design e Comunicação. “Aqui, os estudantes têm praticamente as mesmas oportunidades dadas no MIT, incluindo pesquisas, estágios e atividades extracurriculares”, diz ela. Com os esforços feitos, a Coreia já conseguiu emplacar duas universidades no ranking das 100 melhores do mundo. A SNU e o Kaist estão no QS World University Rankings 2010-2011. Na lista, não há um único representante brasileiro.

Como estudar igual aos coreanos